Acabo de ler o conto “Silêncio”, de Clarice Lispector, e recebo, nas entrelinhas, um convite para observar o silêncio, senti-lo, ouvir seu chamado amigo e até cortejá-lo.
Surpreendo-me com esse apelo literário de Clarice, pois, até então, em suas linhas e entrelinhas, só lhe pude sentir o apelo para ouvir os barulhos – os de fora e os de dentro –, em prol de mudanças, esclarecimentos, liberdade.
Que silêncio será esse, vasto, despovoado, alcançável, insone, imóvel, improvável, vazio e sem promessa?
Que silêncio será esse que não deixa provas, não deixa marcas nem rastro, indizível para quem o sente? Que silêncio será esse cantado e esperado por Clarice? Ela não responde, mas esclarece que há de se tomar uma posição para entrar, reconhecer e saborear o silêncio verdadeiro: “o momento em que do corpo descansado se ergue o espírito atento”. Nessa posição, “o coração bate ao reconhecê-lo”, diz a autora. Procuro entendê-la, aliando o silêncio à vida, a respostas, à coragem; coragem para aceitar seu convite, entrar em sua casa somente sentindo nos ouvidos o próprio coração, desarmada de estratégias, de lutas, de medo de fantasmas. Clarice fala da posição de silêncio como sendo de braços abertos à paz, à calma, à distância das justificativas, das desculpas, da esperança de perdões pedidos em nome da humilhação do ser humano. E eu penso nas posições de silêncio que durante a minha vida não foram escolhidas, intuídas, mas impostas; por isso, não gratas, não recordáveis. Até agora, pelo menos. Penso na menina esperta, levada, viva, que fazia rapidamente as tarefas de aula para ter mais tempo para conversar com as colegas e era impedida pela professora que sinalizava com “Posição de Silêncio”. Era a ordem de comando para que eu cruzasse os braços sobre a carteira e neles apoiasse a cabeça, olhando para baixo. Esse silêncio gerava medo, solidão. No início, sofri olhando a madeira escura, muda, morta. Com o tempo, comecei a desenhar bonecos e bonecas dentro do círculo marcado por meus braços. Aquelas figuras foram se tornando as amigas dos momentos de “Posição de Silêncio”. Eu as olhava, escutava, sussurrava perguntas e respostas. Então passei a querer e a gostar da posição de silêncio, quando, então, podia entrar e participar daquele mundo fantasioso. Mas sofri, novamente, quando me trocaram de carteira e mais uma vez me deparei com o círculo de madeira vazio sob meus olhos. Não por muito tempo. No novo lugar desenhei o fundo do mar com todos os seus habitantes. Com eles tive longas conversas, até o final daquele ano, quando, em 1o lugar, passei para a 4a série.
Penso em mim na adolescência, quando me via obrigada a tomar posição de silêncio frente à família para não ser impedida de viver meus amores, meus desejos, meus prazeres. Tal silêncio gerou culpa, raiva, vergonha em quem queria compartilhar, e não esconder, omitir ou mentir.
Penso em mim jovem recém-formada, transformada, por mérito, de aluna em professora de História, quando precisei calar conhecimentos, medir palavras, escolher formas de abordagem para ensinar o processo histórico da humanidade, obrigando-me a lacunas e inverdades. Era a “Posição de Silêncio” imposta pelas leis do país. Esse silêncio gerou angústia, sentimento de desonra ao diploma, de descrédito profissional.
Penso nesta mulher, criança, adolescente, jovem, adulta, que por toda a vida se viu forçada à posição de silêncio: “criança não fala em conversa de adulto; aluna não fala em sala de aula; menina educada não fala na igreja; moça não fala alto nem conversa com qualquer um; adulto, não pode falar demais, não deve falar sem pensar”... e mais, e mais, e mais.
Penso muito nas mulheres e em suas posições de silêncio – castradoras, desabonadoras, humilhantes – impostas pela família, escola, religião, sociedade, governo. Difícil pensar em silêncio sem ligá-lo a sentimentos tristes, negativos.
Releio “Silêncio”, de Clarice Lispector, na esperança de encontrar numa linha ou entrelinha algum sinal do que a levou a escrever esse apelo pela escuta do silêncio.
Eu, que a conheci, que leio e estudo a sua obra, só a encontrei no texto quando reli a pequena frase: “Nenhum galo”, fazendo alusão ao canto que quebra o silêncio com sua missão imponente, quase religiosa. Eu reconheci a Clarice – mulher – escritora de denúncias, de viagens interiores, de questionamentos da condição humana que, em outras páginas de um outro conto, falando de uma galinha vencedora, disse: “Se fosse dado às fêmeas cantar, elas não cantariam, ficariam muito mais contentes.”.
Este é, para mim, o silêncio verdadeiro: o silêncio voluntário, o silêncio de celebração, o silêncio barulhento que exige um largo sorriso e um gesto de vitória.
Luiza Lagôas
Sabia que eu também tenho uma dificuldade enorme com o silêncio? Quando tento escutá-lo só me perco no redemoinho das minhas conversas internas, fragmentadas, múltiplas, e às vezes repetidas à exaustão. Sonia
ResponderExcluirSerá que o silêncio existe?
ResponderExcluirArnaldo Antunes diz:
ResponderExcluir"...o silêncio
foi a primeira coisa que existiu
um silêncio que ninguém ouviu
astro pelo céu em movimento
e o som do gelo derretendo
o barulho do cabelo em crescimento
e a música do vento..."
O Aurélio diz:
Estado de quem se cala.
Privação de falar.
Taciturnidade.
Interrupção de ruído; calada.
Sossego, calma, paz.
Sigilo, segredo.
O silêncio,
incomoda porque é fermento.Porque é como a folha em branco.
É vácuo, mas não é solidão.
É só a ausência do som nos permitindo ouvir outras coisas. Se ouvimos outras coisas, então, não é silêncio. Nâo existe.
Mas permanece enquanto palavra.
enquanto alguém se cala ou é calado;
enquanto houver lugares tranquilos, segredos e textos a serem escritos.
Lenca