DESABAFOFO
Nem sei porque voltei hoje. Já cansei de você que não fala. Será que ouve? Ou só finge? Pensei que já estivesse fora de moda este tipo de analista que parece uma vaca ruminante, que só fala o final da frase que já foi dita, que abandona sobre o paciente todo o encaminhamento do processo terapêutico. Tem tanta coisa me sufocando e essa sua presença onipotente ressalta minha falta de ar. Queria falar do meu sonho só sonhado, do meu desejo de romper paredes, de formatar mundos utópicos...
Nem sei porque voltei hoje. Já cansei de você que não fala. Será que ouve? Ou só finge? Pensei que já estivesse fora de moda este tipo de analista que parece uma vaca ruminante, que só fala o final da frase que já foi dita, que abandona sobre o paciente todo o encaminhamento do processo terapêutico. Tem tanta coisa me sufocando e essa sua presença onipotente ressalta minha falta de ar. Queria falar do meu sonho só sonhado, do meu desejo de romper paredes, de formatar mundos utópicos...
Naquele tempo, ouviram as rua plácidas o som de um brado forte e retumbante, mas foi o sol do autoritarismo, em raios fúlgidos, que brilhou no céu da pátria, naquele instante. Quanto idealismo! Só mesmo o tempo mostrou como eram frágeis e ilusórios os propósitos de igualdade que não conseguimos conquistar com braço forte, ainda que em seu seio, ó liberdade, desafiasse o nosso peito a própria morte. Onde andarão meus companheiros... Nos perdemos naquele mesmo tempo. Na verdade eu os perdi quando me encontrei imersa em escuro medo... quando a Áurea foi presa... quando o Paulinho morreu na prisão. Você sabia que ele foi torturado para confessar sua participação no seqüestro do embaixador? Ele confessou ser o motorista do grupo, mas ainda assim morreu. É que não pôde falar da rota de fuga, nem explicar meros detalhes. Afinal, como explicar ser o motorista aos dezessete anos, sem carteira de habilitação, sem conhecer direito o Rio de Janeiro, já que era do interior e acabara de chegar?
Você não fica chocado? Então não vai entender mesmo o meu medo. Medo de ter sido vista, de ser pega, de confessar ter sonhado. Medo de morrer por não ter a esperteza de dizer a quem matei. Matei a mim mesma, matei a jovem repleta de amor e de esperança que à terra desceu enquanto no céu risonho e límpido a imagem do cruzeiro resplandecia, enquanto o gigante pela própria natureza dormitava em seu berço esplêndido. Iluminada ao sol de outros mundos chorei pela terra mais garrida, de mais bosques e mais flores. Minha vida, naqueles seios, sem amores.
Agora se ergueu da justiça a clava forte e este filho seu não fugiu à luta. Voltei.
Agora se ergueu da justiça a clava forte e este filho seu não fugiu à luta. Voltei.
Você nem responde... Não responde porque você só ocupa o espaço. Exaure o meu ar, oprime o meu peito e nem aproveita o que me rouba. Se agora for presa, se confessar, vou contar que matei você, senhor do meu espaço, ladrão do meu ar, usurpador do meu tempo, Brasil surdo e mudo dos sonhos que ousei sonhar. Você, que viu a decadência do capitalismo e do comunismo e me deixou de herança apenas a barbárie. Restou-me o niilismo, o incrédulo aceitar do desenfreado e afoito arroubo do escândalo e da corrupção, o indefeso sofrer da violência e da intolerância. Nem mais a chance de proclamar a minha verdade nas ruas, aos berros, ou num panfleto mimeografado, como um poeta marginal. Eu, filha deste solo, tenho em você apenas a madastra hostil, embora deva reconhecer que lá no fundo, escondidinho, meu coração ainda seja verde, amarelo, banco e azul anil.
Sonia Soares
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