4 de nov. de 2009

O Sonho


“Já completados os 40, qualquer mudança é um símbolo detestável”.
(Jorge Luiz Borges)

Toda aquela noite eu não dormi. Todo o dia seguinte eu não vivi, simplesmente deixei que passasse. Era o dia do meu aniversário – março de 1983, verão, calor intenso, domingo, desconforto (fora e dentro de mim) e eu completava 40 anos. Optei por não ter festa, nem passeio, nem roupa nova, nem mesmo almoço ou jantar “melhorados” em casa; não fiz depilação nem as unhas especialmente para o dia. Optei por não fazer nem deixar acontecer nada diferente naquele dia que pudesse sugerir qualquer mudança – de hábito, conceito, opinião, nem mesmo da rotina dos domingos – que se mostrasse conivente, defensora ou anestesiante para quem faz 40 anos. Naquele dia, para mim, qualquer mudança seria detestável, mentirosa, embusteira.
Naquele dia, especialmente, eu não queria, não podia mudar nada em mim nem em minha vida, mesmo com a certeza que já me esgotara. Deixaria para o dia ou a semana seguinte a volta do desejo de mudar. Ou não, talvez percebesse que tudo era assim mesmo e pronto. Eu que procurasse ver e pensar mais claro no em torno não vista e não pensado. Eu que abrisse os olhos, os ouvidos e todos os outros sentidos, inclusive – e principalmente – a intuição.
Assim foi morrendo aquele dia com a lentidão de um ano (comum aos domingos e aos aniversários) até que chegasse a noite, o sono e a chuva. Choveu muito noite a dentro, eu dormi profundamente, embalada e protegida pela chuva forte e barulhenta. E sonhei.

Chego agora ao centro do meu relato e começa o desespero de quem escreve. Conto o que vi como quem fala a uma criança, ou talvez como ouvi da criança que vi no sonho.
Primeiro, vi uma pedra. Depois, a multiplicação das pedras formando o caminho de espécies escuras e irregulares, como as das casas que o ladeavam e me pareciam estranhas moradias. Tudo muito velho, tudo muito sujo, desgastado demais para ser de um tempo próximo. Tudo vinha de outrora, inclusive a menina que por ali chegava olhando para os lados. À procura de que? De quem? Quis que fosse de mim e ao mesmo tempo desejei estar procurando junto com ela. Quis ser ela. Por um tempo estive certa de que a menina era eu, cheia de vida, saúde, esperança, sabedoria e, portanto, completamente diferente do meu eu de agora.
Ela se aproximou e pude vê-la melhor, vestida com um manto negro e penteada com duas tranças. Olhando fixamente para mim, a levou as duas mãos aos olhos como se usasse uma invisível câmera fotográfica e esperasse qualquer reação minha que valesse fotografar. Seus olhos eram grandes, negros, expressivos e ela me olhava com o olhar de quem se chamava Sofia. Sim, Sofia! Eu me lembrava desse nome, não sei de onde, não sei de quando, não sei de quem. Sofia focava para mim através dos seus olhos, imagens que eu não conseguia mais ver. Fotografava meus momentos de visão:
Ciganos chegavam de muito longe e de muito tempo atrás; minhas tranças eram cortadas e oferecidas à Santa; a lua imensa; um labirinto de corredores estreitos desembocava em salas repletas de cadeiras (era a minha escola!) onde, carinhosamente, alguém me dizia que se eu soubesse ler, eu também poderia me locomover como um anjo, desimpedida. Havia uma mangueira repleta de mangas no quintal de alguma avó; o 7º degrau da escada da casa grande. E,então, vi a Vila Emília. Vestido de baile, fantasia de carnaval, pijama de flanela, roupa de comunhão; sapato – boneca, depois e depois um outro de salto alto; baú de brinquedos, prateleiras de livros, caixa de maquiagem, jóias e diários. Um automóvel vermelho esperava no portão. Pessoas que não me lembrava mais, outras que me lembrava demais, outras que não existiam mais e mais outras que ainda insistem em cumprir o contrato com a vida. Vi a amiga que não esquecerei, o altivo corpo, o câncer no peito, a cabeleira violentada, a terra seca e as pedras pretas da oferenda. Vi o mar de navio e barco à vela. Vi o grande sertão, a água viva perto do coração selvagem, os lírios do campo; Macunaíma, Shazan e Xerife, a princesa e o plebeu, o carteiro e o poeta e vi a banda passar cantando coisas de amor. Vi o fluxo do pensamento! E nele, duas meninas olhavam-se de frente, vestidas com mantos negros – que só poderiam ser de seda, tão leves e tão quentes como só são a sede e os sonhos – e penteadas com tranças. Levavam as mãos aos olhos como se usassem uma invisível câmera fotográfica e esperassem qualquer reação. Depois vi ainda mais uma vez a menina afastar-se e voltar ao caminho de pedras. E nada mais vi.
Luiza Lagôas

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