18 de nov. de 2009

O Milagre

Nunca teve nada de seu. Trabalhava desde sempre; desde que fora entregue a uns conhecidos que se mudaram do arrabalde onde nascera numa família em que a fome era muito maior do que as bocas a serem alimentadas. Com os conhecidos, trabalhava, mas não ganhava senão o sustento. Até que a vida tornou-a mocinha e então começaram suas posses: filhos. Aos trancos e barrancos, trabalhava e paria.
Filhos, teve dezoito. Dez mortos, mas oito sobreviveram. Marido, nenhum. As estórias dos filhos perdidos não eram contadas. A dos vivos, sim. De um que ficou em Minas Gerais; dos que foram para São Paulo tentar a sorte; de uma mocinha que se largou no mundo; de outros casados, morando nos confins da cidade em casebres abarrotados de crianças e cachorros.
Com o trabalho de doméstica, os filhos, a idade, o peso avantajado, vivia sentindo “dores nos quartos” e nos joelhos. Por isto, se recolhia logo à noitinha e ficava deitada a rezar. Rezava desde que se entendia por gente. Sempre a mesma reza: ter um lugarzinho seu, uma casinha onde pudesse receber os filhos e netos. Um dia, alguém a levou a uma igreja. E ela ficou encantada!
─ Agora todo sábado, vou na igreja. É bem hora e meia ou mais andando, que não tenho dinheiro para o ônibus, mas é bom que vou rezando e fazendo penitência.
Algum tempo depois, dobrou a dose:
─ Vou pra igreja de quinta e de sábado, porque quinta é dia de testemunhar e sábado é dia de receber a graça.
E, definitivamente, recebeu a graça: floresceu. Do quarto solitário de todas as dores, ela se viu com duas noites de festa por semana, rodeada de novos amigos. As caminhadas a ajudaram a emagrecer um pouco e redobraram sua disposição.
Então sentiu-se realmente agraciada pelo milagre; milagre maior do que o não sentir mais dores.
É que o pastor falou que o dízimo era um empréstimo que, nesta vida, estavam fazendo a Deus, para que, no céu, já tivessem uma morada. Então contribuía religiosamente com o dízimo e ainda dava um pouco mais que o dízimo porque, se nesta vida não tinha conseguido uma casa, no céu ia ter um lugar só seu. Lá isto ela ia.
E dava um pouco mais que o dízimo, porque o seu lugar no céu ia ter que ser num bom terreno de esquina.
Sonia Soares

2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Sonia, a personagem de seu conto me fez lembrar Macabéa, a protagonista de A hora da estrela(Clarice Lispector),uma mulher miserável,que mal tinha consciência de existir, iludida por um futuro luminoso, vivendo entre a realidade e delírio,sendo engolfada por sua própria alma.
    Amiga, seu trabalho enfoca o desamparo a que, todos estamos entregues.
    Gostei muito.
    Bjs

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